A convite da Compolítica, pesquisadores e pesquisadoras associadas refletem sobre a comunicação e política em tempos de pandemia. O primeiro texto desta série é de Liziane Guazina (UnB), atualmente em pós-doutoramento na Itália.
Boa leitura!
Os 50 dias que abalaram a Itália: comunicação e política em tempos de COVID-19
Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasilia. Visiting Scholar no departamento de Ciência Política da Università degli Studi di Milano
Ao percorrermos, de forma breve, os acontecimentos dos últimos quase dois meses na Itália, podemos observar como a chegada da COVID-19 impactou paulatina e profundamente a agenda pública italiana. Neste texto, discuto como os rumos do debate político foram se alterando, e o equilíbrio instável entre as forças políticas dominantes na cena pública passou por mudanças, ameaçando temporariamente a onipresença da liderança política mais popular do país, o populista Matteo Salvini (do partido de direita Lega),até então dominante nas mídias sociais e nos programas de televisão mais populares.
Obviamente, a discussão aqui é feita ainda no calor dos acontecimentos e os desdobramentos decorrentes da pandemia serão estudados por muito tempo. Toda e qualquer análise hoje não abarcará suficientemente a velocidade e a complexidade do que ocorreu nos últimos 50 dias, especialmente na Lombardia, a partir do primeiro caso comunitário positivo identificado, em 21 de fevereiro.
Mesmo assim, vale relembrar um pouco os acontecimentos. Em janeiro, mesmo com as notícias do aumento de casos na China, o ministro da Saúde italiano, Roberto Speranza, garantia que não havia razões para alarmismo. Outras autoridades, receosas dos impactos de uma epidemia na economia, também se posicionavam contra uma possível “infodemia”. Estes posicionamentos não só tinham a intenção de tranquilizar a população, mas também constituíam uma resposta às lideranças de oposição como Matteo Salvini (da Lega) que defendiam medidas duras logo no início, vinculadas à percepção de cunho xenófobo de que imigrantes refugiados poderiam trazer o vírus para o país.
Mas, no final do mês, após a internação no Hospital Spallanzani, de Roma, de um casal de turistas chineses e uma série de indicações de que mais casos externos poderiam ser identificados, inclusive entre italianos que chegavam da China, o governo italiano foi o primeiro no continente europeu a proibir voos entre Itália e o país asiático, e a suspender a concessão de vistos de entrada ao país para pessoas vindas do território chinês[1]. Ainda assim, até aquele momento, a população ainda parecia alheia ao potencial estrago que o SARS-COV-2 poderia causar na vida das pessoas e no sistema público de saúde.
Quando o assessor de Welfare da Região da Lombardia, Giulio Gallera, anunciou o primeiro caso positivo comunitário,em 21 de fevereiro, (o chamado paciente 1, um executivo da UniLever de 38 anos que nunca havia visitado a China e que ficou 18 dias na UTI até se recuperar), o que se viu foi uma corrida das autoridades locais, regionais e nacional para aplicar medidas de contenção, e uma queda-de-braço entre regiões e o governo do Primeiro Ministro Giuseppe Conte para fazer valer regras díspares no território.
No mesmo dia 21, outros 14 casos foram identificados na Lombardia. Nunca foi encontrado quem contagiou o paciente 1 e agora já se sabe, por pesquisas do Hospital Spallanzani com sequenciamento genético, que o vírus chegou à Itália vindo do sul da Alemanha, onde ocorreu o primeiro caso oficial de contaminação na Europa.
O agravamento da situação da Lombardia e do Vêneto, duas das regiões mais ricas da Itália e governadas pela Lega, levou ao fechamento das primeiras cidades atingidas, consideradas zona vermelha, ao fechamento de escolas e universidades em toda a região da Lombardia e, duas semanas depois, em 8 de março, ao Lockdown completo da Itália (que só deve terminar, segundo o último decreto do Governo Conte, em 3 de maio).
A identificação oficial de casos comunitários no final de fevereiro e o aumento rápido do número de casos de contágio no início de março constituíram ponto de inflexão que levou a uma mudança visível na agenda midiática, como é de se esperar, mas também a uma alteração, ao menos temporária, na correlação de forças e na participação dos atores políticos no espaço público de discussão.
Do ponto de vista de agenda midiática, há de se considerar que, naquele período inicial de janeiro, o tema do coronavírus era ainda secundário na mídia tradicional. Dados do jornal Corriere della Sera ilustram esta perspectiva: em janeiro, foram publicados apenas 195 textos com citação direta sobre o coronavírus. Em fevereiro, há um salto para 1569 textos, em março, quando a crise alcança seu ápice, passa para 6.152.
Importante notar que a agenda político-midiática, nos últimos anos, tem sido ocupada, em boa parte, por temas bem conhecidos dos pesquisadores italianos: imigração (especialmente, o desembarque de barcos de Organizações na-governamentais nos portos italianos, com destaque, desde 2019 para o caso do barco Open Arms e de sua comandante Carola Rackete), o pagamento de taxas e impostos, e as intensas disputas políticas em relação ao governo (atualmente, de centro-esquerda, liderado pelo Primeiro Ministro Giuseppe Conte e sustentado pelo Partido Democrático e pelo Movimento Cinque Stelle após a queda forçada de Matteo Salvini do governo em agosto de 2019(no que muitos analistas italianos apontaram como estratégia político-eleitoral para forçar novas eleições e se tornar o Primeiro Ministro).
Entre dezembro e janeiro deste ano, havia destaque especial, por exemplo,para os desdobramentos da corrida eleitoral para governo da região da Emilia-Romagna; a emergência nas ruas do movimento popular dos chamados Sardine (sardinhas), que haviam saído às ruas contra Salvini em nome da democracia, e para o polêmico processo de investigação contra Salvini por impedir o desembarque de imigrantes.O coronavírus ainda não era o tema dominante da agenda midiática no início do ano.
Outro aspecto importante a ser observado é que, ainda em janeiro, quando o tema do novo coronavírus era abordado por políticos populares, especialmente por Salvini (Lega) e Georgia Meloni (Fratteli d’Italia, partido de extrema-direita), era notadamente compreendido e enquadrado dentro dos limites culturais da agenda política italiana: diretamente relacionados à questão da imigração, acasos de preconceito e discriminação em relação aos chineses da comunidade local ou turistas, e aos impactos diretos na economia, particularmente no setor de turismo, que é grande e importante no país. Um post de Matteo Salvini no Facebook em 29 de janeiro ilustra este enquadramento: “Parece normal a vocês que no resto do mundo fechem fronteiras, bloqueiem os voos e coloquem em quarentena quem chega da China, enquanto na Itália abram os portos?”(fazendo alusão à política do governo Conte de acolher os imigrantes refugiados). O post obteve 23.120 curtidas.
No entanto, conforme agravava-se a situação no sistema de saúde, a avalanche de informações sobre o novo coronavírus desafiava a prática de capturar e encapsular um tema em benefício político próprio. Além de ser um tema que emergiu de fora do contexto político italiano, exigia conhecimento científico mais apurado para um posicionamento que ganhasse repercussão com o crescimento alarmante do número de contagiados, internados e mortos.
Como um navio que se descobre em alto mar durante uma tempestade com rombos no casco, no início de março, o governo central em Roma e os políticos italianos dos mais diversos matizes perceberam que a situação era pior do que gostariam e mudava com muita rapidez em direção ao abismo.
Na Itália pré-coronavírus, os líderes políticos mais populares, como Matteo Salvini,se posicionavam sobre todos os aspectos cotidianos da vida italiana explorando, a seu favor, as múltiplas facetas do senso de identidade dos italianos das diferentes regiões: hábitos alimentares, datas festivas, memórias dos tempos de guerra, relação com a natureza, etc. Posts de Salvini com a filha, como o publicado no Facebook no dia 3 de janeiro (intitulado “Papà felice”/ Papai feliz), por exemplo, alcançou 49.394 curtidas[2].
Todos os temas da vida cotidiana, portanto, são passíveis de serem politizados. Isso ocorre não somente em relação à agenda estritamente política de governo e oposição, com seus embates com o atual governo de Giuseppe Conte, mas a partir de estratégias de apropriação e reframing dos temas com maior audiência nas mídias sociais digitais, sem distinção entre o que é cultural e o que é político.
Para se ter uma ideia da força da máquina de mídia digital das forças políticas de direita na Itália, deve-se observar alguns números do Facebook nos últimos 5 anos: de janeiro de 2014 para outubro de 2019, Salvini saltou de 59.693 seguidores para quase 4 milhões (3.802.291). Neste mesmo período, Georgia Meloni passou de 69.948 para 1.244.808. Os únicos políticos que fazem frente a esses números são aqueles ligados ao Movimento Cinque Stelle, com forte discurso antistablishment: Beppe Grilo, fundador do M5S, é o segundo político com mais seguidores no mesmo período analisado: se manteve estável de 1.428.029 para 1.991.399, e Luigi di Maio, atual Ministro das Relações Exteriores, que saltou de 41.332 em 2014 para 2.184.912 em 2019 (Gabanelli e Ravizza, 2019).
Somente Salvini dispõe de uma equipe (chamada de “La Bestia) com 35 profissionais que trabalham diariamente na definição de estratégias de comunicação digital. De janeiro a outubro de 2019, ele publicou uma média de16 posts no Facebook e recebeu a média de 3,8 milhões de likes ao dia. (idem, 2019). Já em janeiro de 2020, ele já tinha alcançado 4 milhões de seguidores no Face, com uma média diária de 28 postagens[3].
Suas publicações são compartilhadas por chat de Whatsapp para cerca de mil seguidores que compartilham em seus próprios canais digitais. Como em um jogo de espelhos, a estratégia Salviniana de hiper-presença está baseada em ocupar e manter a visibilidade ao máximo possível em três espaços: televisão, rede (digital) e território. Vídeos, anúncios de eventos e declarações bombásticas sempre de ataque aos adversários se revezam com entrevistas nos principais canais de televisão e intensa programação de eventos em todo o território italiano. Para intensificar a captura das temáticas mais relevantes nas redes, a equipe utiliza softwares para identificação do tema mais discutido do dia e pesquisas de opinião para verificar a aprovação dos posicionamentos (Gabanelli e Ravizza, 2019; Diamanti e Pregliasco, 2019).
Se na década de 1990, a figura de Silvio Berlusconi explorou de forma bem sucedida na televisão o mix de política-espetáculo, fofocas e detalhes da vida privada com a suposta defesa dos interesses dos italianos pequeno empreendedores “acima de tudo”, nos anos 2000, o ativismo digital do comediante e mentor político Beppe Grillo ultrapassou as barreiras que ainda havia entre política, informação e entretenimento, e levou à criação do Movimento 5 Stelle, de cunho populista, claramente fundamentado em discursos personalistas e anti-stablishment, e que emergiu como a grande novidade “jovem” dentro do sistema político-partidário (Mazzoleni e Bracciale, 2019, p. 13-17)
A lógica da viralização, desintermediação e neointermediação em plataformas digitais privadas lideradas por algoritmos é explorada de forma profissional, notadamente por políticos de direita, a partir de um repertório renovado do mix informação e entretenimento aprendido com seus antecessores berlusconianos: 1) presença constante, seja na mídia tradicional, seja nas mídias sociais digitais, e também no território (com comícios e eventos); 2) ênfase na personalização e auto-promoção, com exploração da intimidade, do lifestyle e de estratégias de celebridades em busca de identificação a partir de cenas de intimidade. Além disso, vale mencionar o 3) uso estratégico de storytelling, que “moldam” as narrativas em polarização para serem debatidas à exaustão pelos italianos nas mídias sociais digitais. (idem, 2019)
Mas o uso profissional dos recursos desta lógica complexa de hiper-visibilidade em um contexto de“política pop” e de retórica populista disseminada (Mazzoleni e Bracciale, 2018), foi desafiado, repentinamente, com outras lógicas advindas da emergência. Neste sentido, o dia 21 de fevereiro pode ser entendido como um marco histórico e simbólico da mudança, e duas semanas depois, em 8 de março, quando houve a explosão de casos e o fechamento completo do país, especialistas da saúde como virologistas, epidemiologistas, imunologistas, intensivistas de Pronto Socorros de hospitais e membros da Proteção Civil passaram a ocupar os principais programas de debates na televisão, como Porta a Porta, Dritto e Rovescio, entre outros, além de capas de jornal, e a publicar, eles próprios, nas mídias sociais digitais, informações sobre o caos no sistema público de saúde do norte da Itália.
Além disso, o presidente do Conselho de Ministros, o Primeiro Ministro Giuseppe Conte, figura pública mais habituada a gabinetes e espaços acadêmicos (ex-professor universitário de Direito), passou a aparecer com destaque em toda a mídia, e a fazer transmissões oficiais ao vivo em streaming pelo Facebook com as últimas decisões governamentais. Conte, considerado politicamente independente, foi alçado ao posto de Primeiro Ministro “técnico” por indicação do Movimento Cinque Stelle em 2018, quando o partido e a Lega formaram o governo. Foi justamente neste ano que sua página oficial no Facebook foi criada. Hoje, já em seu segundo momento como Primeiro Ministro, sob o acordo entre o M5 e Partido Democrático,ostenta 3,6 milhões de seguidores e um total de 2,8 milhões de curtidas (16/04/20). Junto com ele, apareciam em onipresença nos canais de televisão, governadores de regiões (especialmente Attilio Fontana, da Lombardia, e Luca Zaia, do Vêneto), e prefeitos das cidades mais atingidas como Bergamo, Milão e Brescia.
Até mesmo o jornal Líbero, politicamente alinhado à direita e apoiador de Salvini, declarou em capa online de 21 de março que o “os italianos premiam Giuseppe Conte. Não obstante os atrasos nas decisões para fazer frente à emergência, o premiê sai fortalecido”[4]. Outra pesquisa, realizada pelo Instituto Ipsos para o CorrieredellaSera, considerado um jornal de referência e de centro, publicada em 29 de março, também mostra a ascensão de Conte e do governo na aprovação dos italianos, especialmente depois das medidas restritivas do 8 de março: 56% aprovavam o governo e 61% aprovavam o Primeiro-Ministro. Na sequência imediata, aparecem GeorgiaMeloni, com 41%, MatteoSalvini, com 39%, o ministro da Saúde, Speranza, com 33%. Líderes do Partido Democrático aparecem na lista com índices em torno dos 30%, assim como Luigi di Maio, do Movimento CinqueStelle [5].
Após mais de 50 dias de emergência sanitária e com pressões fortes de setores da indústria e do turismo para voltar à normalidade na chamada fase 2 da emergência sanitária, é difícil prever se as estratégias de hiper-exposição midiática dos líderes políticos vão mudar e se a dinâmica de forças políticas vai se alterar efetivamente.
De um lado, os erros cometidos na gestão da crise do coronavírus na Lombardia, reduto da Lega, onde cerca de 30% do sistema de saúde é privatizado, tem colocado políticos do partido na defensiva. Entre os temas mais espinhosos, está a continuação de contágios em Milão, o escândalo das casas de repouso, onde centenas de idosos faleceram por Covid-19 e que estão sendo investigadas por negligência, e a não-declaração de zona vermelha em Bergamo (a cidade não foi fechada como as outras mais atingidas por pressão dos empresários locais) que poderia ter sido feita pelo governo da Região, a exemplo da EmiliaRomagna (Gabanelli e Ravizza, 2020).
De outro, as tensões com a União Européia, especialmente relacionadas à ajuda financeira para a Itália, e as divisões da opinião pública italiana sobre a relação entre o país e a Europa, aumentam ainda mais a crise política e econômica, e fortalecem o caminho para os temas preferidos dos soberanistas italianos. Em seu último pronunciamento no Facebook em 10 de abril, curtido por 308 mil pessoas e com 169 mil comentários, Giuseppe Conte utilizou tempo de fala para atacar diretamente Matteo Salvini e Georgia Meloni em função das críticas que recebeu sobre a posição da Itália no contexto europeu. O uso de tempo oficial para uma crítica direta nominal foi alvo de descontentamento de jornalistas independentes importantes, como Enrico Mentana, e desagradou também parte dos italianos.
Qual caminho político, portanto, a Itália seguirá, ainda é muito difícil dizer. O que se pode afirmar, com certeza, é que o peso dos 168.941 casos oficiais positivos e 22.170 mortos por Covid-19 (até 16 de abril) jamais será esquecido. A emergência do coronavírus já é um divisor de águas na forma como os italianos veem a si mesmos, seus líderes políticos e a própria Europa.
[2]Levantamento junto à Fanpage Karma/Top posts).
[3]Levantamento junto à Fanpage Karma.
[4]https://www.liberoquotidiano.it/news/politica/21425783/sondaggio_reputation_science_giuseppe_conte_matteo_salvini_divario_ampio_favore_premier.html
[5]https://www.corriere.it/politica/20_marzo_29/coronavirus-sondaggio-piu-fiducia-conte-governo-lega-31percento-pd-m5s-ripresa-bedecf12-712d-11ea-a7a6-80954b735fc3.shtml
fan sui social. Corriere della Sera, 20/10/2019. Disponívelem: https://www.corriere.it/
Mazzoleni, G. e Bracciale, R. Socially mediated populism: the communicative strategies of political leaders on Facebook.Palgrave Communications, 2018. DOI: 10.1057/s41599-018-0104-xDOI: 10.1057/s41599-018-0104-x