Compolítica - Associação de Pesquisadores em Comunicação Política

Especial Coronavírus #17

A convite da Compolítica, pesquisadores e pesquisadoras associadas refletem sobre a comunicação e política em tempos de pandemia.

Boa leitura!

DEU TILT NA ESFERA PÚBLICA?

Wilson Gomes
Professor Titular da UFBA e Coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD)

Deu ruim!

Deu tilt na esfera pública! Como esta metáfora dos idos do fliperama pode não ser reconhecida pelos mais jovens, traduzo: deu erro na esfera pública, travou o sistema. Pelo menos essa me parece a tese central, publicada há pouco neste mesmo espaço, do querido amigo professor Lattman-Weltman, há anos um relutante habermasiano desejoso de se juntar às legiões deliberativas mineiro-frankturtianas. Como Lattman-Weltman chegou a esta intrigante conclusão? Partindo da famigerada “reunião ministerial” de 22 de abril do governo Bolsonaro, constata assombrado uma enorme “fratura” de visões de mundo entre os Comensais da Morte daquele macabro simpósio e os outros. Os “trouxas”, eu diria, se duas alusões a Harry Potter na mesma sentença não fosse provocação demais para o meu prussiano amigo.

Tergiverso. Voltemos ao ponto.

Lattman-Weltman fala de “fratura”, mas também de “abismos” e “dissonâncias”, de dois idiomas em circulação simultânea, de “inviabilização” e “impossibilidade” de comunicação, e, enfim, da “extinção da esfera pública”. Acalmem-se, todavia, os precipitados neo-habermasianos. Não há aqui propriamente investimento contra a ideia de esfera pública, mas um lamento pelo fato de que, não importa como essa noção seja definida afinal, alguma coisa nas circunstâncias políticas atuais no Brasil está destruindo, se não já o fez, as condições mesmas da existência do fenômeno da esfera pública. Não é que o conceito seja ruim, ao que entendi, é que a existência mesma da possibilidade de comunicação alargada entre os cidadãos, de deliberação pública ou de produção discursiva coletiva sobre “o comum” parece-lhe impossibilitada. Lattman-Weltman não o diz, mas é como se passássemos da metáfora do mercado livre de ideias, em que a diversidade e o atrito são essenciais, mas não se pode impedir o entendimento recíproco, para uma outra metáfora, de um universo de mônadas, de leibnitziana memória. Uma mônada, como se sabe, não tem janelas.

O Brasil, de fato, se tornou nos últimos anos um país em que qualquer pessimismo tem se provado não ser radical o bastante. De forma que compreendo o sentimento geral que domina o texto de Lattman-Weltman, um racionalista-realista da melhor cepa que agora se vê desarmado diante de um muro por meio do qual uma parte da sociedade brasileira se isolou da outra. É um muro cognitivo, tijolo por tijolo de um ceticismo com foco e propósito. Trata-se, portanto, do muro da impossibilidade de comunicação. Atrás do fosso e dentro das muralhas se distribuem e compartilham, por contrastes, credulidades desconcertantes, dogmas improváveis, mas também posições existenciais, visões de mundo, amor e reconhecimento, em suma, identidades. É um muro identitário. Extramuros não há comunicação autêntica porque é vedado levar em consideração o que o outro diz, é proibido mudar de ideia, é ilícito pôr-se no lugar do interlocutor, é inaceitável admitir que ele fala de boa-fé e que algum dos seus argumentos seja, se não verdadeiro, ao menos razoável.

Zurück zu Leibniz?

Não, não seria, portanto, apenas o fim da “esfera pública”, mas da razão comunicativa, da deliberação pública, do uso público da razão, do mercado liberal de ideias, ou de qualquer coisa que Habermas, Rawls, Kant ou Mill, dentre outros, tenha inventado como categoria para sustentar que em uma vida pública saudável as pessoas precisam minimamente se entender sobre os negócios públicos. Ou, dito à moda kantiana, a negação de que modos de vida politicamente legítimos e eticamente relevantes são aqueles em que as pessoas se envolvem em disputas argumentativas públicas, por meios das quais lidam com as divergências e com as preocupações da sua vida íntima e particular, submetendo-os à consideração dos demais cidadãos. De forma que na Arena Lattman-Weltman, ao fim da partida, assinala-se, o melancólico placar de Gottfried Leibniz 7 x 1 Immanuel Kant. Jürgen Habermas, contundido, nem jogou.

Mas será mesmo para tanto? A ideia de uma troca pública de razões (que depois vai virar algumas coisas diferentes nas mãos de John Rawls, nas quatro ou cinco versões do conceito por Jürgen Habermas, e na turma da Democracia Deliberativa) descreve, finalmente, apenas uma quimera, como parece ao autor que comentamos? Será mesmo que a razão pública travou e o jogo precisará ser reiniciado, se é que já não o foi?

Vejamos.

Concordo com o mestre Lattman-Weltman que vivemos um momento com baixíssimas chances de compreensão entre facções políticas. Ou de que há poucos empreendedores políticos interessados em construir pontes pelo menos para um entendimento mínimo do que poderia esboçar um espaço comum de intercomunicação. Eu diria, além disso, que há pouco interesse manifesto nas bases de uma comunicação voltada para algum entendimento simplesmente porque se chegou a um momento em que relutamos até mesmo em aceitar o direito de o outro existir, quanto mais de admitir o seu direito de falar e de apresentar reivindicações.

Mas isso inviabilizaria uma “comunidade de comunicação” (para usar uma interessante expressão do “amigo de Habermas”, Karl-Otto Apel) apenas se de fato se tratasse de uma cisão fundamental entre duas porções semelhantes, em tamanho e hegemonia, da nossa sociedade. Dito de forma simples, a sugestão de dualismo de Lattman-Weltman é provavelmente a minha primeira diferença do velho amigo. Mas será verdade?

Dando nome aos bois

Embora tenhamos como nunca muitos grupos radicalizados, e cada vez mais sectários, na nossa sociedade, acho que apenas o bolsonarismo é um movimento social relevante do ponto de vista político e demográfico. Na verdade, por mais que os novos identitarismos de esquerda tenham fragmentado a comunidade política em seitas em desesperada e acelerada busca por compactação e isolamento, ainda permanece uma linguagem comum e alguns princípios compartilhados que permitem níveis produtivos de argumentação pública. Há ressentimento e há uma indisfarçável busca por conflito (“a treta ou a vida”), mas mesmo as estratégias de produção de constrangimento, de cancelamentos e assédios passam por argumentos e princípios que os outros precisam entender e compartilhar para que tais estratégias possam funcionar. Não se pode constranger sem uma língua comum e sem valores compartilhados.

E mesmo a evidente radicalização do lulismo, a que assistimos, não torna impossível a comunicação por cima dos muros entre os de dentro e os de fora. Por mais que adote uma retórica do ressentimento e algum nível de satanização do outro, o dialeto lulista que esta gente fala é genuinamente da cepa linguística do Iluminismo, do marxismo popular e do Humanismo cristão. Que sempre foi a língua franca da esquerda e do centro do espectro político.

Da inegável sectarização à esquerda, com a sôfrega formação de comunidades autônomas, ciosas da diferença que representam e dedicadas a construir e reforçar muralhas, por mais paradoxal que seja, não resulta a impossibilidade do entendimento com os que estão fora do mundo. Não estou evidentemente falando em compreensão/entendimento no sentido de indulgência, de um acolhimento benevolente das razões do outro, de complacência e tolerância, posto que no estágio atual das lutas identitárias estão todos estocando gasolina e amolando facas. Mas me refiro ao sentido intelectual de entendimento, de decifrar o que o outro diz, de discernir as suas razões. Portanto, trata-se de cognição, inteligência, conhecimento e reconhecimento do outro, do que ele diz, das suas reivindicações, da sua perspectiva.

Onde a busca por entendimento fatalmente fracassa é nesta forma identitária da extrema-direita que é o bolsonarismo. Sim, o bolsonarismo compartilha com os identitários de esquerda muitas das suas atitudes intelectuais e morais: vitimização (“somos uma minoria hétero, cercada de gays por todos os lados”), simplificação de toda a vivacidade extramuros (é tudo esquerdismo sistêmico ou opressão estrutural da direita), demonização moral do outro, gosto por teorias da conspiração, adoção dogmática de uma epistemologia tribal (“só é verdade o que dizem os nossos”) casada com um consistente heteroceticismo (“tudo o que eles dizem há de ser mentira”), a desconfiança com quem hesita ou quer deixar uma porta entreaberta, fartas recompensas para quem se radicaliza e para quem queima os navios. Só que tudo exacerbado, extremado, considerando que a tolerância, isto é, o reconhecimento de que o outro não pode nem deve ser eliminado, não é um dos seus valores.

Além disso, como há um sentido de vitória, de que estão avançando (o vitimismo revanchista da direita x o vitimismo derrotista da esquerda), há a sensação de que se está naquela fase da guerra em que o inimigo ainda pode ser convertido à força ou passado no fio da espada. É só uma questão de tempo ou persistência. Neste caso, a comunicação voltada para o entendimento, na segunda acepção apresentada acima, não faz sentido. O outro, fora dos muros, não nos chega como um discurso, mas como um barulho caótico e desagradável, como algazarra e gritaria, como uma balbúrdia, chata e indesejável, mas, felizmente, provisória.

Assim é claro que, desse ponto de vista, uma ação comunicativa voltada para o entendimento não emerge como um desideratum social. Para a seita, para a tribo, para a identidade é bastante reforçar o idioleto que adotamos, não há ganhos em uma língua comum. Construir pontes, no nível dos códigos ou da construção de consensos, não é uma prioridade superior a reforçar as muralhas. Neste preciso sentido é que Lattman-Weltman teria razão, uma esfera do comum, a esfera pública, torna-se irrelevante quando as pessoas não precisam mais se entender porque um lado espera poder reduzir o outro ao silêncio ou aniquilação. Neste sentido, por outro lado, a impossibilidade da esfera pública só poderia significar que regredimos a uma fase civilizatória antes que a tolerância fosse adotada como o melhor princípio para se edificar comunidades políticas baseadas na paz e na pluralidade. Retrocedemos à fase da luta de todos contra todos.

Isto, porém, é a visão de mundo do bolsonarismo e não necessariamente a nova condição social da vida pública nacional. Não é um projeto sustentável em longo prazo, a não ser que uma ditadura instaure uma nova paz social à base de morte e tortura. Não é este o caso. Ainda mais que o identitarismo de direita é demograficamente minoritário e politicamente montado por meio de partes costuradas apressadamente devido à urgência de surfar o antipetismo de 2018. Mas a criatura de Frankenstein resultante agora se despedaça a olhos vistos.

Sim, é fato que os sectarismos, de direita e de esquerda, não parecem estar apenas de visita na nossa cambaleante democracia, mas isso não quer dizer que estamos condenados a nos despedaçar em comunidades de ódio recíproco e ressentimento. O impulso para buscar entendimentos e acordos a fim de encontrar modos de vida em comum é também um motor poderoso da nossa história, e tende a funcionar como contratendência para frear as pulsões de morte por fragmentação e incapacidade de comunicação.

Neste sentido, considero que a situação-limite esboçada por Lattman-Weltman se pretenda um experimento mental elegante criado pelo maître à penser carioca para nos descrever o abismo à beira do qual dançamos perigosamente um tango. Só nos resta esconjurar o cenário apresentado: Dahls é mais!

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