Compolítica - Associação de Pesquisadores em Comunicação Política

Especial Coronavírus #2

A convite da Compolítica, pesquisadores e pesquisadoras associadas refletem sobre a comunicação e política em tempos de pandemia.

Camilo Aggio (UFMG) escreve sobre descentralização da comunicação e desinformação analisando o governo de Jair Bolsonaro no contexto da COVID-19.

Boa leitura!

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A eficácia da hidroxicloroquina

Camilo Aggio
Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD). Doutor em Comunicação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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Sento-me para escrever este texto numa manhã ensolarada de sábado, em devida quarentena, alguns minutos depois de ler uma nova pesquisa DataFolha sobre as desventuras brasileiras sob o comando do bolsonarismo. Dois dias após o previsível desfecho da novela envolvendo o longo processo de demissão de Luiz Henrique Mandetta do cargo de ministro da saúde de um governo doentio, o instituto mostrou – para o susto de muitos – que o grande apoio popular ao hoje ex-ministro da saúde diante de sua atuação frente à crise do coronavírus não corresponde, nem em termos proporcionais, a um esfacelamento da popularidade do atual presidente da República.

O DataFolha mostrou que a proporção que aprova o desempenho de Jair Bolsonaro é tecnicamente equivalente à proporção dos que o desaprovam, segundo a margem de erro: 38% consideram o comando de Bolsonaro ruim/péssimo e 36% consideram ótimo/bom, mas com um detalhe importante: 23% consideram o desempenho regular. Isso significa que se considerarmos as fatias de ótimo/bom e regular, Jair Bolsonaro vem amealhando uma situação confortabilíssima, uma vez considerando suas pregações anticientíficas, a adesão a tudo que é contrário aos melhores protocolos internacionais para o combate da pandemia do novo coronavírus, sem mencionar as afrontas ao bom senso, algo criminosas, ao desrespeitar o isolamento social abraçando pessoas nas ruas, coçando os olhos e o nariz em público, criando eventos mediáticos em torno disso.

A saída de Mandetta provocou outros panelaços, que já haviam acontecido durante alguns dos pronunciamentos feitos pelo presidente da República. Em muitos fóruns de discussão política online, sustentei que não deveriam confundir os panelaços dessas ocasiões com uma reprovação a Jair Bolsonaro. Obviamente que elas – as reprovações – existem, mas em coexistência com aqueles que estão protestando, pontualmente, contra uma decisão do presidente e não contra o conjunto de suas ações ou qualidades. Essa pesquisa DataFolha reforça meu ponto, assim como uma outra sondagem de opinião do mesmo instituto reforçou o alerta que fiz a uma pesquisa anterior que tratava a desaprovação de Jair Bolsonaro diante da crise do novo coronavírus como um equivalente ao nível de sua popularidade. Falso.

O mesmo instituto, posteriormente, demonstrou que quase 60% dos brasileiros eram, e provavelmente continuam sendo, contra a renúncia do presidente. Uma hipótese enamorada da teoria da escolha racional poderia ser usada para especular que essa maioria de brasileiros está apenas pensando na estabilidade da democracia, da necessidade primordial de que mandatos sejam cumpridos como regem as normas de uma boa democracia. Ledo engano. A mesma pesquisa mostrou que para 52% dos brasileiros, Jair Bolsonaro reúne as qualidades necessárias para liderar esse País em que 57,7 milhões o elegeram para presidente da República em 2018.

A fila de espantados é longa. Tanto quanto a dos desencantados, desnorteados e frustrados que, mais uma vez – provavelmente desde que Bolsonaro começou a aparecer como possibilidade eleitoral – apostaram que “dessa vez ele se estrepa aos olhos, corações e mentes dos brasileiros”. Mais uma vez erraram, assim como erraram tantos preparados e demonstrativamente inteligentes quando apostavam, dia sim, dia também, até outubro de 2018, que Jair Bolsonaro tinha batido no seu teto. O teto de eleitores. Começou com os 7% e, tirando um ou outro momento de estagnação, não parou mais de subir.

Enfim, como pode um presidente da República demonstrativamente ignorante, despreparado, belicoso e perigoso, que afronta o bom senso, a Ciência, desdenha das evidências, faz pouco caso das eminentes milhares de mortes de brasileiros, que incita a população a se atirar do precipício para aglomerações em espaços públicos ou privados, que insiste numa solução de cura mágica, visto não haver qualquer comprovação de eficácia, que esconde um teste que pode ser positivo para a COVID-19 – sem mencionar a sua ficha corrida de insultos, discriminações e agressões? Como pode ainda estar em posição tão confortável depois de demitir um ministro tão bem quisto pela maioria dos brasileiros, como evidenciado acima? Como pode um absurdo, de cabo a rabo, continuar forte no jogo da disputa pela adesão popular?
Talvez seja justamente por tudo isso.

Se o Brasil não é para principiantes, como disse o maestro Antônio Carlos Jobim, o bolsonarismo não é para distraídos, afoitos e afeitos ao uso de categorias eficientes do passado que falharam em explicar o nosso presente. São muitas as hipóteses e argumentos para explicar esse fenômeno político. Não tenho as páginas necessárias para fazê-lo, portanto, atenho-me a uma dimensão fundamental, imprescindível para tanto: a comunicação política. E é nela que se posta, certamente, o nosso maior desafio.

Não precisa ser simpático a Jair Bolsonaro e a seu bolsonarismo – pode-se despreza-los moral e politicamente, como eu desprezo todo e qualquer bolsonarista – para reconhecer uma coisa tão óbvia: a organização desse movimento político se sustenta, fundamentalmente, pelo modo como interpreta o estado das coisas e das pessoas neste país e como com tudo isso se entrelaça. A própria eleição de Jair Bolsonaro já denota que os tempos da comunicação e seus potenciais efeitos são outros: sem partido (apenas um puxadinho de sigla), sem grandes doações, tempo irrisório de rádio e televisão, sem destaques positivos na grande imprensa, sem alianças e coligações, sem qualquer capital e recall eleitoral em nível nacional, Bolsonaro já tinha 30% no Acre em março de 2018, como lembrou Nizan Guanaes, emendando: “De onde veio esse cara no Acre?”

Não chegou por meio da grande imprensa. Também não chegou de avião, nem de ônibus, nem andando ou através de correligionários, fundamentalmente. É mais do que plausível que sua aproximação e conquista de predileção se deu por meio da comunicação digital. E chegou com mensagens que os filtros da grande imprensa bloqueariam no nascedouro. A descentralização da comunicação – ou desintermediação, como chamam alguns – está no cerne da ascensão de radicalismos de extrema-direita ao redor do mundo. No Brasil não é diferente. E não se trata de sustentar uma teoria “hipodérmica” da comunicação elegendo o povo brasileiro como um amontoado de gente acrítica, cognitivamente vulnerável, manipulável. Mas sujeitos com convicções, valores disposições, pré-disposições que fizeram e fazem de Jair Bolsonaro e seu movimento, por meio da publicidade de sua persona moral e política, uma peça que pode se encaixar normativamente a esse contingentede brasileiros. Talvez eles, os Bolsonaro, entendam o espírito do tempo melhor do que muitos outros.

E aqui entra um elemento fundamental, como chamam muitos autores, a exemplo de YochaiBenkler, Robert Faris e Hal Roberts no livro Network Propagada: vivemos uma crise epistêmica. Se não crise, ao menos um momento singular do modo como a verdade é construída em regimes democráticos. Os tradicionais “gatekeepers” do projeto moderno de democracia já não são mais os únicos – e talvez nem os mais fortes e importantes – a lidar com a opinião pública com enormes vantagens face a outros jogadores desse certame: os fluxos digitais abertos de circulação e propagação – tanto quanto potencialmente opacos, de difícil monitoramento e controle – de informação e conteúdos criaram novos grupos sociais e políticos e novos líderes de opinião. E “novos” não é sinônimo de novas criaturas, mas novos conjuntos de pessoas: a agregação de comuns, antes distantes, e agora descobertos, reconhecidos e unidos. E muitos desses criaram vínculos de pertença e identidade em que a produção da verdade, de suas crenças e princípios fundamentais, se dão por meio do regime de produção e consumo de informações e conteúdos afinados ao que entendem como uma ideia real de verdade.

A verdade na construção dos climas de opinião já não é mais construída prioritariamente pelas janelas da grande imprensa, nem mesmo dos cânones científicos por meio da mesma grande imprensa. O horizonte de disputas pela construção de uma narrativa que se faz verdadeira por muitos não precisa passar pelo conhecimento ou simplesmente respeito do discurso de alguma autoridade especializada em algo: em tempos de redes sociais digitais, ser especialista não demanda formação e conhecimento, mas a declaração e o constante reforço de que se tem alguma especialidade. Não à toa que Kim Kataguiri dá palestras sobre Liberalismo, política carcerária ou mesmo uso de agrotóxicos. Desse modo, igualmente, Olavo de Carvalho se torna filósofo e Bela Gil referência na área de odontologia ao recomendar o descarte de cremes dentais com flúor para dar lugar ao uso de cúrcuma para higienizar os dentes.

É exatamente nesse território em que surfa o bolsonarismo, principalmente neste momento tão delicado. Com investimento, articulações centrais e também descentralizadas as redes digitais. E aqui, ao menos para mim, nasce um outro sinal de alerta muito bem amparado por mais um prognóstico feito por muitos e já prontamente invalidado pelas pesquisas mencionados no início desse texto: não faltam os que apostam no fim, na derrota de Jair Bolsonaro, no triunfo da Ciência, da verdade científica, de dados estatísticos ao longo e ao fim da crise do novo coronavírus. Osbolsonaristas da linha de frente sabem, mais do que muitos, que a instabilidade da construção de uma verdade nunca foi tão grande, assim como as oportunidades de criação de verdades paralelas àquilo que para muitos é evidente, mas que para outros tantos, muitos e variados, não é.

Muitos apostam que o pai de Carlos, seu gerente de comunicação, não resistirá à pilha de mortos que nos espera nos próximos meses. Igualmente, acham que ele será responsabilizado por pregar a volta da normalidade, da preservação dos empregos, do estímulo aos jovens enfrentarem feito “homens” esse vírus, encarando-o como quem encara gotas de chuva ao sair de casa para estudar ou trabalhar. Que será, enfim, tachado do que, sim, é: um projeto de genocida.
Mas as coisas não são tão simples. Infelizmente.

Num país de subnotificações de contaminação e atestados de óbito, bem como na confusão das atribuições de responsabilidades entre prefeitos, governadores e presidente, tudo que temos na enorme esfera pública, nunca antes tão fragmentada, são brechas e lacunas epistêmicas prontas para serem preenchidas com as verdades do grupo que sairá triunfante das disputas simbólicas por meio das redes digitais. A estratégia de criação das falsas controvérsias, a confecção de dúvidas e imprecisões sobre a causa das mortes, as grandes teorias conspiratórias, a exploração dos medos, incertezas e inseguranças, a confusão e a cacofonia são projetos políticos de um movimento que governa o Brasil por meio do emprego do caos como método, como disse Marcus Nobre em uma edição da Revista Piauí. E os canais empregados para tanto são aqueles à disposição em plataformas e aplicativos digitais.

Essa é a eficácia da hidroxicloroquina do bolsonarismo. Não são mais testes, comprovações, consensos científicos e as consequentes reverberações dos líderes da opinião publicada e transmitidas por radiodifusão que definem, com grande protagonismo, os parâmetros daquilo que é definido como falso, verdadeiro, do que é ficção. Em tempos de incrível expansão e fragmentação das comunicações de massa e, consequentemente, dessa nova mudança estrutural da esfera pública, a disputa pela construção da verdade nunca foi tão central em termos políticos e sociais, bem como confusa, imprevisível e danosa para a saúde democrática.

Pode até ser evidente para muitos as responsabilidades presentes e potencialmente futuras de Jair Bolsonaro. Mas essa narrativa não é dada, nem está definida. Está sendo jogado, inclusive por um sujeito que, como presidente da República, possui recursos e poderes para criar situações caóticas e partir para a batalha da comunicação nas redes digitais num esforço que pode ser promissor de criar interpretações falsas sobre fatos e atribuições de responsabilidades intencionalmente falaciosas. Tudo isso revestido, obviamente, por uma qualidade antiética exacerbada, mas como sempre foi. E assim se elegeu presidente, e assim continua com nacos graúdos de popularidade.

Termino de escrever um texto ouvindo um desses tantos áudios que circulam pelo Whatsapp. Neste em questão, a voz alarmada e alarmante de uma senhora alerta para o perigo do uso de máscaras de proteção, como tem sido recomendado pela OMS e muitos prefeitos e governadores do Brasil: “O material está vindo da China infectado pelo coronavírus”, diz ela.

Num país que a despeito da abundância de informações e repetição exaustiva de recomendações de segurança – como o isolamento social – pela grande imprensa, há uma correspondência direta entre as posturas e declarações do presidente da República e o abandono da quarentena por parte de cidadãos de vários estados e municípios, a pergunta que fica é: o quanto conteúdos desse tipo não encontrarão afinidade e adesão? A quantos chegaram e chegarão? Com que efeito? Qual o teto da popularidade de Jair Bolsonaro e quantos restarão reconhecendo a adequação de suas qualidades ao que se espera de um líder de Estado? Talvez a melhor resposta esteja na hidroxicloroquina.

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