A convite da Compolítica, pesquisadores e pesquisadoras associadas refletem sobre a comunicação e política em tempos de pandemia.
No texto desta semana, Fábio Vasconcellos (UERJ/ESPM-RJ) discute o agendamento e a “comunicação dessincronizada” de Bolsonaro.
Boa leitura!
Os limites dos poderes de agendamento do presidente da República no contexto da pandemia
Fábio Vasconcellos
Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ), mestre em Comunicação Social (UERJ), professor da UERJ e da ESPM-RJ
A crise provocada pela pandemia do novo coronavírus tem chamado atenção para uma série de questões no âmbito dos estudos da comunicação política. O papel dos meios tradicionais de comunicação na conformação e manutenção da agenda pública, o comportamento da sociedade confinada e mais disponível para consumir um volume considerável de informações, ou mesmo as estratégias de comunicação dos governos são algumas das questões mais evidentes no momento. O caso brasileiro, no entanto, tem outro ingrediente igualmente importante de ser observado, qual seja, o papel do presidente da República na gerência da comunicação do Governo.
A magnitude dessa crise exigiu do Poder Executivo ações coordenadas com um duplo objetivo. A primeira ação, de natureza pedagógica, teria como finalidade explicar para a população qual era a situação e o que deveria ser feito para se proteger; a segunda, de natureza política, teria o objetivo de sinalizar que o Governo estava atento e tomava decisões para enfrentar a situação. Essas ações, muitas vezes indissociáveis, comporiam uma espécie de estratégia sincronizada de comunicação, na qual a agenda da sociedade é incorporada pelo Governo, e este passa a produzir mensagens alinhadas com as expectativas da população.
Acontece que nos sistemas presidencialistas, o chefe do Executivo desempenha papel central na orientação da comunicação e nos seus efeitos sobre a percepção que a sociedade tem sobre “o que o Governo tem feito”, ou mesmo, como é o caso, sobre como ela deve agir para se proteger. A explicação para isso está no arranjo institucional que transfere para a figura de uma pessoa, no caso o presidente eleito pelo voto direto, o papel de representante único do Poder Executivo. O que o presidente fala importa e é simbolicamente relevante. Esse poder de fala e de mobilização da atenção, que poderíamos classificar como poder de agendamento do presidente da República, é indissociável do seu cargo e das suas ações.
Essas são algumas premissas gerais, resta observarmos agora alguns dados empíricos do caso brasileiro. O Governo Federal, como sabemos, é muito mais amplo do ponto de vista prático do que a figura do presidente. Há inúmeras instâncias e órgãos que tomam decisões diariamente, e isso não tem sido diferente durante a pandemia. Muitas dessas decisões foram noticiadas, inclusive, pela imprensa. Essas ações, no entanto, foram mencionadas apenas lateralmente pelo presidente nas suas falas públicas.
Bolsonaro tem uma compreensão diferente sobre os riscos da Covid-19 e a ordem de prioridades diante da crise, e assim procurou pautar os seus discursos diários. Suas falas acabaram ganhando forte repercussão na imprensa e nas mídias sociais. Parte disso se deve a uma mudança na estratégia de comunicação, ocorrida ainda em 2019. Além do uso da comunicação via mídias sociais, Bolsonaro passou a adotar encontros diários com a imprensa. Todos os dias, o presidente responde a perguntas de jornalistas, logo no começo da manhã, na porta do Palácio da Alvorada.
Como todo presidente, Bolsonaro sabe que suas posições públicas têm poder de gerar repercussão. Em situações normais de temperatura e pressão, a tentativa de influenciar a agenda e a percepção sobre os temas atende a um propósito bem simples: governos que conseguem controlar minimamente a agenda e os enquadramentos sobre os temas públicos criam melhores condições para governar.
Os encontros com jornalistas, no entanto, ampliaram a visibilidade negativa das falas do presidente porque ali tinha um fato com alto valor-notícia: Bolsonaro adotou uma pauta bastante dissociada das ações que as demais áreas do Governo vinham aplicando no enfrentamento da pandemia, e diferente também da percepção majoritária na imprensa e na sociedade sobre os riscos da Covid-19 [1] . Mesmo quando decidiu usar as mídias sociais ou o pronunciamento em cadeia de TV, Bolsonaro manteve o discurso de que havia “histeria” e de que se tratava e uma “gripezinha”.
Nesse contexto, podemos dizer que a percepção dos brasileiros sobre o desempenho do Governo esteve muito orientada pela insistência do presidente de tentar controlar a agenda com assuntos paralelos ou mesmo pela sua noção sobre o baixo risco da Covid-19 [2]. É sintomático, por exemplo, que o Ministério da Saúde, até então chefiado pelo ex-ministro, Luiz Henrique Mandetta, tenha obtido altos índices de aprovação, enquanto, no mesmo período entre março e abril, os percentuais de desempenho de Bolsonaro tenham sido bem inferiores, e com tendência de piora.
O ex-ministro Mandetta, como se sabe, optou por uma comunicação diária, transmitida ao vivo, em que procurava calibrar o discurso com a percepção de que a situação de fato era grave e exigia cuidados. Pelo DataFolha, o desempenho positivo do ministério foi 2,3 vezes maior que a avaliação positiva de Bolsonaro. Na mesma pesquisa, 51% consideraram que o presidente mais atrapalhava do que ajudava no combate à Convid-19.
A discussão explorada neste texto de maneira muito geral sugere alguns apontamentos. Embora presidentes da República tenham poder de mobilizar a sociedade e a imprensa, chamando atenção para os temas e enquadramentos do seu interesse, parece haver limites contextuais para esse poder, como demonstraram Peake e Eshbaugh-Soha (2008) e Page e Dempsey (1995). No caso brasileiro, a extensão da crise, o grau com que a imprensa e a sociedade compartilham a mesma percepção do cenário, ou mesmo os índices de popularidade mais restritos do presidente, tendem a explicar esse limite [3].
É verdade que a insistência de Bolsonaro em enfraquecer o discurso do isolamento gerou efeitos práticos, com alguns estados e cidades enfrentando graves problemas, mas, no cômputo geral, os dados demonstram que o presidente foi menos ouvido do que desejava. Isso de certa forma aparece nas pesquisas de opinião. Ao mesmo tempo em que rejeitava a atuação do presidente, a população aprovava a atuação do Ministério da Saúde, órgão que faz parte do Governo Bolsonaro.
A comunicação política do presidente durante a pandemia representa, portanto, um típico caso de comunicação dessincronizada entre as políticas adotadas pelo Governo, as ações de fato, e as agendas e enquadramentos perseguidos pelo presidente, no momento em que imprensa e sociedade demonstravam um maior alinhamento sobre a percepção da crise. Em outros termos, o poder de agenda de um presidente da República não é algo dado pelas características do cargo que ocupa. Depende fortemente também da sua habilidade para gerenciar a comunicação do Governo com a sociedade de modo que, no momento adequado, consiga reorganizar a agenda conforme as políticas que deseja aplicar. Nisso, Bolsonaro falhou.
Referências
Cohen, J. E. (1995). Presidential Rhetoric and the Public Agenda. American Journal of Political Science, 39(1), 87. doi:10.2307/2111759
Edwards, G. C., & Wood, B. D. (1999). Who Influences Whom? The President, Congress, and the Media. American Political Science Review, 93(02), 327–344. doi:10.2307/2585399
Peake, J. S., & Eshbaugh-Soha, M. (2008). The Agenda-Setting Impact of Major Presidential TV Addresses. Political Communication, 25(2), 113–137. doi:10.1080/10584600701641490
Page, B. I., Shapiro, R. Y., & Dempsey, G. R. (1987). What Moves Public Opinion? The American Political Science Review, 81(1), 23. doi:10.2307/1960777
[1] Cerca de 60% dos brasileiros, segundo pesquisa DataFolha de 01 a 03 de abril/2020, consideram importante o isolamento social como forma de combater a Covid19. http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2020/04/06/6c9855d692b869f13c5d83c421568342hb.pdf
[2] É preciso lembrar que, durante a pandemia, o presidente Bolsonaro demitiu o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, além do ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro. Os dois casos competiram com a atenção dos brasileiros confinados em suas casas a espera do fim da pandemia e ou de informações sobre a ações do Governo federal para enfrentar a crise.
[3] Em dezembro de 2019, portanto, quase três meses antes do início da pandemia no Brasil, Bolsonaro registrada cerca de 36% de avaliação ruim/péssimo. Cerca de 30% dos entrevistados pelo DataFolha consideravam o presidente como Ótimo/Bom, percentual praticamente estável considerando os três levantamentos anteriores feitos pelo instituto. http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2019/12/23/57102c2d2b4f095adbec95cb335c7066abc.pdf