Compolítica - Associação de Pesquisadores em Comunicação Política

Especial Coronavírus #12

A convite da Compolítica, pesquisadores e pesquisadoras associadas refletem sobre a comunicação e política em tempos de pandemia.

Boa leitura!

 

Com quem os fascistas falam?

Diógenes Lycarião

Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC. Doutor em Comunicação pela UFMG

 

Não podemos conceber a existência de um líder fascista, muito menos que o mesmo venha a tomar o poder, sem que multidões apoiem seus atos, inclusive aqueles mais arbitrários e violentos. E tais multidões também não são concebíveis sem que elas sejam expostas à propaganda desse líder e que sejam sensíveis a ela. Mas o que leva à existência dessas multidões? O que faz com que a propaganda fascista seja tão irresistível e fascinante para alguns? O que faz com que alguém, através dessa propaganda, admire e dê suporte a um líder de claro viés autoritário? Em suma, quem são aqueles com quem os fascistas não apenas falam, mas conquistam o apoio e a admiração?

Esse tipo de questão surgiu fortemente na agenda das pesquisas sociais após a Segunda Guerra Mundial, quando o mundo buscava compreender o que tornou possível o surgimento do fascismo italiano e alemão, principais vértices do conflito.

Dentre os esforços de pesquisa ligados a esta agenda, destaca-se o trabalho liderado por Theodor Adorno que resultou na obra “Estudos sobre a Personalidade Autoritária”, publicada na década de 1950 e que se lançou a identificar, através da aplicação de questionários e entrevistas, os traços de personalidade e mecanismos psicanalíticos que constituem os indivíduos inclinados a apoiar um regime autoritário. No caso dos questionários, eles foram desenvolvidos para se gerar, a partir das respostas dos entrevistados, escalas das diversas dimensões políticas e de personalidade investigadas. A mais notória dessas escalas é a Escala F (Escala de Fascismo). Quanto mais escores o respondente obtinha no questionário, maior seria a sua propensão a apoiar um líder fascista.

A obra organizada por Adorno inspirou uma série de revisões, críticas e aperfeiçoamentos metodológicos com o objetivo de se identificar de maneira testável e replicável os traços de personalidade daqueles que são mais inclinados a endossar lideranças autoritárias e conservadoras.

Nessa esteira, destaca-se o livro de Bob Altemeyer, The Authoritarians (Os Autoritários), publicado em 2006 e que, através de uma linguagem direta e bastante didática, compila os resultados de mais de 50 anos pesquisas sobre o tema, sendo boa parte delas realizadas pelo próprio autor. Altemeyer inclusive desenvolveu, ao longo de diversos testes, a escala RWA (Right-Wing Authoritarianism), ou seja, a Escala de Autoritarismo de Direita. Os resultados e análises dessa obra são impressionantes pela sua atualidade e correspondência com diversos fenômenos que observamos diariamente.

Um dos mais reveladores se refere ao descortinamento das contradições explícitas que configuram as atitudes e discursos daqueles que atingem os mais altos escores da RWA, no caso, os pequenos autoritários do cotidiano. Notoriamente, tais indivíduos reivindicam grande superioridade moral e religiosidade em relação aos demais indivíduos da sociedade, ao mesmo tempo que também são aqueles que são mais preconceituosos e dispostos a lançarem duras penas e até violência contra outros indivíduos, desde, claro, que tais outros sejam vistos como moralmente inferiores, seja na forma de “bandidos”, “radicais” etc. Pelo alto nível de preconceito que adotam, muitos grupos podem entrar nessa categoria.

Mas como pode alguém achar que é moralmente virtuoso e até digno de um bom cristão aplicar duras penas e até perseguir (sem mandato legal) aqueles que se desviam das normas legais? Altemeyer nos esclarece que, devido a algumas características mentais e comportamentais, não há, para os indivíduos em questão, aí qualquer contradição.

Dentre essas características, está a descoberta que esses indivíduos não são muito afeitos ao raciocínio lógico, adotando, assim, formas inconsistentes de argumentação, as quais, contudo, não se mostram inconsistentes aos mesmos pelo fato deles adotarem maneiras fortemente compartimentalizadas de raciocínio.

Assim, percebe-se que os autoritários identificados pela escala RWA correspondem, em sua maioria, a um perfil intelectualmente rude, inconsequente (por ser incapaz de prever efeitos indesejados para si próprio) e moralmente hipócrita.

As consequências desastrosas de termos líderes com esse perfil foram testadas através de um fascinante experimento desenvolvido por Altemeyer e sua equipe. O experimento foi desenhado pela criação de um jogo denominado Global Change Game (Jogo da Mudança Global), que simula cenários de conflitos mundiais que precisam ser geridos pelos jogadores, os quais são levados a adotar o papel de líderes de nações ou bloco de nações em cada simulação. Diversas rodadas desse jogo foram realizadas por Altemeyer e sua equipe, sendo que quase todas as simulações que resultaram em guerra nuclear ampla (com a morte de bilhões de pessoas) foram lideradas por equipes com pessoas que obtiveram resultados elevados na escala RWA, ou seja, aqueles pequenos autoritários do cotidiano que falamos há pouco.

São eles que se fascinam e se energizam com a ideia de que um líder bom é aquele que demonstra força e impetuosidade diante dos adversários, alguém que, diante de ameaças (reais ou imaginárias), não hesita em reagir com afinco e devota convicção de sua própria correção e moralidade. São esses os pressupostos que permitem eles se sentirem bem mesmo cometendo (ou autorizando) os atos mais cruéis e desumanos que se possa imaginar.

Daí que, apesar de todo o aperfeiçoamento metodológico e teórico posterior feito por pesquisadores como Altemeyer,  elementos do pensamento de Adorno parecem continuar válidos até hoje. Destaco no caso, a ideia de que esses pequenos autoritários, em nome da defesa dos valores e das instituições tradicionais (contra ameaças mais ou menos fantasiosas), almejam, consciente ou inconscientemente, a abolição desses mesmos valores e instituições.

As pesquisas de Altemeyer mostram, para certo alívio, que, apesar de serem bem eloquentes e potencialmente agressivos, esses pequenos autoritários continuam sendo minoria, pelo menos isso no contexto norte-americano dos EUA e Canadá. E o que podemos pensar sobre o Brasil diante disso? Bem, para esses pequenos autoritários chegarem ao poder total, eles talvez nem precisem ser maioria, mas apenas de instituições fracas e de uma maioria silenciosa. Ainda bem que as torcidas aqui são barulhentas, fortes e organizadas.

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