Compolítica - Associação de Pesquisadores em Comunicação Política

Especial Coronavírus #13

A convite da Compolítica, pesquisadores e pesquisadoras associadas refletem sobre a comunicação e política em tempos de pandemia.

Boa leitura!

 

#Blacklivesmatter: internacionalização das manifestações antirracistas e seu significado para o Brasil

Cristiano Rodrigues
Professor do Departamento de Ciência Política da UFMG

 

I, Too

I, too, sing America.

I am the darker brother.
They send me to eat in the kitchen
When company comes,
But I laugh,
And eat well,
And grow strong.

Tomorrow,
I’ll be at the table
When company comes.
Nobody’ll dare
Say to me,
“Eat in the kitchen,”
Then.

Besides,
They’ll see how beautiful I am
And be ashamed—
I, too, am America.

Langston Hughes

“Se realmente deseja saber como a justiça é administrada em um país,
não pergunte aos policiais, advogados, juízes ou membros protegidos da classe média.
Vá até os desprotegidos – aqueles que, precisamente, mais necessitam da proteção da lei! –
e ouça seu testemunho.”

James Baldwin

“I can’t breath” – frase/cântico entoada por milhares de pessoas ao redor do mundo nas últimas semanas remete, na superfície, ao vídeo que circulou amplamente pelas redes sociais mostrando um policial branco de Minneapolis asfixiando George Floyd por 8 minutos e 46 segundos. Seu significado, porém, vai muito além. O cântico que agora veio à superfície revela, sobretudo, que a cor da pele pode ser determinante para a biopolítica do deixar viver ou fazer morrer.

O assassinato de Floyd, que causou comoção mundial e gerou uma onda histórica de manifestações internacionais, ocorreu em 25 de maio de 2020, mas a sensação de não conseguir respirar acompanha os descendentes da diáspora africana há muito tempo. O #blacklivesmatter, hashtag e movimento criados por Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi em 2013 são uma tentativa de expressar politicamente o luto pelas vidas negras expostas à violência policial nos EUA e afirmar o que deveria ser óbvio mas que ainda não foi historicamente reconhecido.

A hashtag #blacklivesmatter apareceu pela primeira vez no Twitter em 13 de julho de 2013, como reação à absolvição de George Zimmerman, indiciado pela morte do adolescente negro Trayvon Martin em 2012. Um texto publicado em 2016 pela Pew Research Center[1] revela que, inicialmente, a hashtag obteve pouca repercussão, sendo mencionada 5.106 vezes até o final daquele ano.

A hashtag e o movimento #blacklivesmatter ganharam notoriedade em 2014, quando o adolescente negro Michael Brown foi assassinado a tiros por um policial branco em Ferguson, Missouri. #BlackLivesMatter foi utilizada no Twitter aproximadamente 58.747 vezes por dia nas semanas que se sucederam à morte de Brown. Seu uso aumentou consideravelmente em novembro de 2014, após o grande júri de Ferguson decidir não indiciar o policial envolvido na morte de Brown. A hashtag foi usada 1,7 milhão de vezes nas três semanas seguintes à decisão do júri. A onda de protestos e convulsão social causadas pela decisão do júri levaram o então presidente Barack Obama a fazer um pronunciamento à nação, no qual afirmou:

“precisamos reconhecer que a situação em Ferguson representa desafios mais amplos que nós ainda enfrentamos como nação. O fato é que, em muitas partes deste país, existe uma profunda desconfiança entre as autoridades policiais e as comunidades de cor. Parte disso é resultado do legado da discriminação racial neste país. E isso é trágico, porque ninguém precisa mais de um bom policiamento do que comunidades pobres com taxas mais altas de criminalidade.”[2]

A partir de então o movimento #blacklivesmatter se fortaleceu, contando atualmente com 16 diretórios locais nos EUA e no Canadá[3] desenvolvendo ações políticas que empregam estratégias voltadas para as redes sociais e também protestos de rua.  As manifestações de 2020 são, entretanto, significativamente diferentes das anteriores, por diversas razões. 1) os protestos deste ano já duram quatro semanas e congregam mais manifestantes que os do movimento por direitos civis dos anos 1960; 2) rápida alteração da opinião pública dos eleitores norte-americanos sobre o #blacklivesmatter. Até 2018 a maioria dos eleitores era desfavorável ao movimento. Porém, em junho de 2020 84% dos eleitores democratas e 30% dos republicanos mostram-se favoráveis ao #blacklivesmatter[4]; 3) os protestos se tornaram manifestações multirraciais e transnacionais por direitos humanos, reunindo milhares de pessoas nas ruas de vários países ao redor do mundo; 4) as manifestações contam com o apoio de importantes políticos dos EUA. Prefeituras de algumas cidades, como Los Angeles, estão propondo o remanejamento de investimentos das polícias locais para a assistência social e geração de emprego e renda em regiões habitadas por maioria negra. Ressalta-se ainda que congressistas do Partido Democrata apresentaram um projeto de lei de reforma do sistema de justiça criminal[5]; 5) criou-se uma rede de solidariedade internacional para o financiamento dos protestos e de organizações do Black Lives Matter, além de fundos para pagamento de fianças de manifestantes presos pela polícia, entre outras atividades. Parcela da elite econômica e empresarial dos EUA também tem apoiado o movimento, contribuindo financeiramente para os protestos e propondo a alteração das estruturas organizacionais com o objetivo de garantir a ampliação da diversidade nas empresas; 5) o enquadramento da mídia tem sido relativamente favorável aos protestos, acentuando seu caráter relevante, urgente e transformador.

Os manifestantes norte-americanos reivindicam o fim da violência policial e a transferência do orçamento destinado às polícias para políticas sociais voltadas às comunidades negras e pobres. Há ainda uma parcela dos ativistas que defende a extinção da polícia[6]. O caráter internacional das manifestações e o teor de suas principais reivindicações ecoaram fortemente no Brasil, país profundamente marcado pelo legado da escravidão e do impacto do racismo, o que suscitou a saída às ruas de manifestantes antirracistas e antifascistas nos últimos finais de semana.

O racismo no Brasil e nos EUA tem alguns aspectos semelhantes, o que também ajuda a explicar, em parte, o impacto que as manifestações após a morte de George Floyd têm gerado por aqui. Em ambos os países a ação policial e o sistema de justiça criminal são marcados pela seletividade racial. Nos anos 1990. Sérgio Adorno, da USP, apontava em suas pesquisas para o seguinte perfil da população carcerária brasileira: majoritariamente jovem, masculina, negra e respondendo por crimes relacionados ao tráfico de drogas. A justiça ainda condena com maior severidade criminosos negros, revelando a desigualdade de direitos e prejudicando o funcionamento da democracia. Além disso, no Brasil, 40% da pessoas presas não foram julgadas e 61% dos detidos são negros.  Algo semelhante ocorre nos EUA, onde a taxa de encarceramento de negros é seis vezes maior que a de brancos e, embora negros perfaçam entre 12 e 15% da população, são 37% da população carcerária do país.

A ação do Estado em ambos os países em áreas majoritariamente negras e pobres se caracteriza por três aspectos: 1) excesso de policiamento, 2) falta de proteção social e, 3) encarceramento em massa. A letalidade da ação policial contra negros também é alta em ambos países. Em 2019, a polícia dos EUA matou 1.099 pessoas, das quais 259 (24%) eram negras. No Brasil, no mesmo período, a polícia matou 5.804 pessoas, das quais 4.533 (75%) eram negras[7].

Há, contudo, importantes diferenças entre o contexto das relações raciais no Brasil e nos EUA. Para os americanos a escravidão e seu legado seriam o “pecado original” da nação. No Brasil, por outro lado, se nega veementemente o papel estruturante da escravidão e do racismo em formatar a identidade nacional. Isso se reflete no apoio e na opinião pública sobre as manifestações antirracistas no país. O apoio político e das classes médias para esse tipo de protesto é baixo, uma vez que questionam o princípio de negação do racismo que sustenta a identidade nacional brasileira. Há um temor de que um dos efeitos desse questionamento seja a tentativa de ruptura de privilégios de classe e raça dos quais os brasileiros brancos das elites políticas e econômicas não querem abdicar.

Ademais, o Estado brasileiro responde com maior violência e criminalização protestos e ações contestatórias, como pode ser observado nas jornadas de junho de 2013 e nas respostas policiais às manifestações de professores por melhores condições de trabalho que ocorreram em São Paulo e no Paraná em anos recentes. Acresce-se a isso que a falta de solidariedade de pessoas brancas das classes médias e altas aumenta os custos de participação em protestos para as pessoas negras, normalmente mais vulneráveis econômica e socialmente, que ficam expostas à violência policial, à diferentes formas de retaliação profissional e social decorrentes de sua participação em manifestações. Ainda assim, sempre que ocorrem situações como a do assassinato de João Pedro, centenas e as vezes milhares de pessoas saem às ruas para reivindicar, mas nem sempre recebem apoio popular e cobertura favorável da mídia na divulgação desses protestos.

Importante notar ainda que as estratégias do movimento negro no Brasil têm sido bastante eficazes em produzir avanços sociopolíticos, a despeito da pouca visibilidade que recebem, o que contribuí para uma falsa ideia de imobilismo social da população negra no país. Desde os anos 1980, as organizações do movimento negro priorizaram três campos de intervenção: o primeiro voltado à aproximação institucional, incialmente participando ativamente da criação e desenvolvimento das legendas de centro-esquerda durante a redemocratização, depois por via do advocacy institucional em agências internacionais, em assessorias de mandatos legislativos, na criação de secretárias e comissões voltadas para comunidade negra em governos locais e estaduais, e durante as administrações petistas, participando das burocracias estatais e na formulação e implementação de políticas públicas para a população negra.

O segundo campo de intervenção é o da luta contra o mito da democracia racial e politização da população negra, que tem como um de seus resultados mais visíveis o aumento do percentual de brasileiros que se autodeclaram pretos e pardos nos censos. O terceiro campo é  representado pela ascensão do ativismo de jovens feministas negras na última década, que emprega estratégias de protesto nas ruas, nas redes sociais e de empoderamento das mulheres.  Elas têm reivindicado maior representação política de mulheres negras e investindo em táticas de “ocupação” da política institucional. Os mandatos ativistas[8], inovação institucional na política brasileira é fortemente inspirado em princípios do paradigma interseccional, criado por feministas negras. Por fim, jovens feministas negras estão revolucionando o mercado editorial do país. A tradução de importantes obras de feministas negras de outras latitudes, a reabilitação de intelectuais marginalizadas/os na academia e o incentivo para a publicação de trabalhos inovadores de intelectuais negras/os sobre temas pouco difundidos no país são alguns dos exemplos dessa revolução. Enquanto escrevo este texto, Pequeno Manual Antirracista,  de Djamila Ribeiro, é o livro mais vendido do Brasil e a coleção feminismos plurais, coordenada por ela, tem vários de seus títulos nas listas de best-sellers. O impacto da coleção pode ser observado pela popularização de temas como “lugar de fala”, “interseccionalidade” e “racismo estrutural”, até recentemente circunscritos ao debate acadêmico.

Por essa razão, analisar os impactos das manifestações internacionais antirracistas no Brasil não deve ser uma via de mão única, o que pode promover, ainda que implicitamente, uma assimetria interpretativa, em que a experiência norte-americana é elevada à condição de exemplo a ser seguido.  A luta antirracista, em suas diferentes frentes, é um processo não linear de avanços e retrocessos que é mais bem compreendida em um constante diálogo transnacional, como propôs Paul Gilroy, em o Atlântico Negro,  em uma rede em que viajam pessoas e ideias.

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[1] Disponível em: https://www.pewresearch.org/internet/2016/08/15/the-hashtag-blacklivesmatter-emerges-social-activism-on-twitter/

[2] Disponível em: https://obamawhitehouse.archives.gov/blog/2014/11/24/president-obama-delivers-statement-ferguson-grand-jurys-decision

[3] Disponível em: https://blacklivesmatter.com/chapters/

[4] Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2020/06/10/upshot/black-lives-matter-attitudes.html

[5] Disponível em: https://www.cnbc.com/2020/06/08/democrats-release-police-reform-bill-after-george-floyd-protests.html

[6] https://www.nytimes.com/2020/06/12/opinion/sunday/floyd-abolish-defund-police.html

[7] https://www.poder360.com.br/internacional/policia-brasileira-matou-17-vezes-o-n-de-negros-do-que-a-dos-eua-em-2019/

[8] http://www.ocupapolitica.org/

 

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