Compolítica - Associação de Pesquisadores em Comunicação Política

Especial Coronavírus #3

A convite da Compolítica, pesquisadores e pesquisadoras associadas refletem sobre a comunicação e política em tempos de pandemia.

Maria Helena Weber (UFRGS) discute a comunicação pública no contexto da COVID-19.

Boa leitura!

 

O COVID19 NA PERVERSA NARRATIVA PRESIDENCIAL

Maria Helena Weber

Professora PPGCOM/UFRGS. Pesquisadora CNPq. Coordenadora do NUCOP – Núcleo de Comunicação Pública e Política e do OPBOMP – Observatório de Comunicação Pública.

 

Ainda incontrolável, a pandemia global causada pelo Coronavírus tem provocado estranhamentos sociais, políticos com debates e movimentos inimagináveis há poucos meses. Vou me deter no campo da comunicação política, especificamente, da comunicação pública, entendendo que as narrativas presidenciais, políticas, jornalísticas e de especialistas sobre a pandemia amplificam as tensões que marcam a recente democracia brasileira e incidem negativamente na imagem pública de um Brasil de governabilidades contraditórias e poderes confusos. De um lado, a narrativa presidencial eivada de impropérios e desmandos com apoios eventuais e, do outro, governadores e prefeitos alinhados às determinações da saúde pública, posicionamentos dos poderes legislativo e judiciário, cobertura ininterrupta da imprensa, enquanto o SUS e os profissionais da saúde tentam salvar vidas.

A pandemia global Covid-19 é um acontecimento público de máxima magnitude, se fizermos analogia à escala Richter que classifica os terremotos até 10 (destruição total). Outra relação pode ser estabelecida com as devastadoras guerras mundiais. Vive-se em meio a uma previsível catástrofe que exige decisões políticas, econômicas e científicas tomadas sem os limites das fronteiras geográficas e partidárias. Nessa direção, há uma mobilização mundial para salvar vidas (do vírus e da miséria), encontrar uma vacina (de acesso público) e minimizar danos econômicos.

Pela primeira vez, a humanidade vive a experiência única da simultaneidade de estar em cena, de poder se comunicar por inúmeros dispositivos e se saber conectada com os outros mesmo sem entender seus idiomas, sem as diferenças de classe e cultura. Ao mesmo tempo, o isolamento amplificou a necessidade de orientações críveis e legítimas. Esse processo permite refletir sobre a comunicação pública, conceito que identifica constitucionalmente a comunicação das instituições democráticas. Quando falam, os governos devem obedecer aos princípios do interesse público, o que implica estabelecer relações, viabilizar a comunicação entre estado e sociedade e promover o debate público sobre temas vitais.

Ao falar em interesse público, a verdade se impõe como princípio da narrativa governamental. Enquanto em outros momentos o discurso da política pode tergiversar, relativizar e até subestimar a verdade, neste trágico acontecimento, isto não poderia ser possível porque o medo da morte ronda a todos e apenas o governo tem a resposta sobre suas vidas. Uma resposta associada à ciência e acordada com os procedimentos internacionais. O discurso e o comportamento do presidente Jair Bolsonaro, no entanto, semeiam a insegurança e mais medo, na medida em que duvida dos procedimentos indicados pela OMS; se contrapõe a governadores e prefeitos; demite seu próprio ministro da saúde (Luiz Henrique Mandetta) que defendia o isolamento social e prega o funcionamento da indústria e do comércio. O Brasil tem sido a grande e vergonhosa exceção na minimização da pandemia, devidamente registrada pela imprensa internacional.

Compreender o que significa a pandemia e como proceder são necessidades urgentes da sociedade amedrontada. A legitimidade das respostas está no resultado de um debate público nacional e internacional sobre as questões de saúde pública e econômicas. Participam os poderes do Estado, organismos especializados, a imprensa, o mercado, a sociedade e entidades representativas. No centro desse debate está o governo, do qual se exige coerência em defesa do interesse público nas decisões sobre saúde pública e economia. No entanto, suas respostas escamoteiam o debate e privilegiam interesses privados e o seu particular entendimento sobre as consequências da contaminação para o país. Por um lado, colabora para ampliar o medo e o desespero dos miseráveis e por outro, fortalece sua narrativa mítica, religiosa que permite a seus apoiadores segui-lo, cegamente, sem discernimento. A postura errática dos órgãos governamentais mantém a discussão qual um jogo, onde as regras são modificadas na conveniência do dono do tabuleiro. A tensão, então, é permanente, na medida em que os ditos líderes promovem a insegurança, de modo irresponsável.

Então, uma questão interessante a ser identificada é que a falta de responsabilidade e descaso sobre a comunicação pública do governo indica o distanciamento de uma opinião pública favorável, de uma imagem pública eleitoralmente competitiva, na medida em que a defesa da sociedade, na grande maioria dos países, está sendo colocada em primeiro lugar. A credibilidade das ações é definida pelos órgãos de saúde pública internacionais e, assim, propaganda, notícias e discursos governamentais são promovidos e naturalmente avalizados, em nome do interesse público, como atos de utilidade pública, afirmando a retórica governamental.

A democracia é debate público, é comunicação, mas contraditoriamente, abriga o fato de que nem sempre prevalece o interesse público. Os interesses privados que elegeram e mantêm governos, políticos e partidos estabelecem as tensões entre os poderes e a sociedade e esta raramente é respeitada, atendida. No Brasil, a partir de 2016, a dimensão pública da comunicação vem sendo escamoteada: na falta de debates sociais na Reforma Trabalhista e Reforma da Previdência; no desmonte de aparatos e investimento da Cultura; no fechamento de emissoras de radiodifusão pública e, no enfraquecimento estratégico da ciência e das universidades públicas. Cada vez mais o interesse público é figura de retórica. Numa democracia, operar o conceito da comunicação pública como princípio normativo para a comunicação governamental, comunicação de órgãos estatais e dos poderes legislativo e judiciário é determinante para identificar a disputa entre interesse público e interesses privados.

No Brasil de 2020, habitado pela mortal Covid-19, podemos afirmar que os princípios normativos da comunicação pública estão sendo desprezados com requintes próprios do autoritarismo e de uma perniciosa e inquietante estratégia. O discurso científico, o movimento dos governantes de todo o mundo em nome da preservação da vida (interesse público) são ignorados, desprezados em nome de interesses privados do mercado e da visão particular sobre o vírus. Pode-se identificar uma estratégia perversa por parte do governo federal, de tornar predominante sua narrativa na combinação de uma retórica errática do governo; na exposição de brigas intestinas; nas encenações dramáticas do presidente Bolsonaro nas ruas; nos confrontos com governadores, prefeitos e com os poderes legislativo e judiciário; na negação da ciência em nome da magia, da religião, do mercado e, especialmente, na demonstração da sua ingovernabilidade.

Observando os discursos, as ações, podem ser identificadas três estratégias de comunicação do Planalto, distintas do interesse público: obter visibilidade a qualquer custo para mostrar quem é o dono da terra; alimentar a paranoia e o ódio aos culpados (esquerdistas, comunistas e petistas) por quaisquer mazelas nacionais e, assim, manter o conforto dos cidadãos que precisam acreditar. Esta postura é eficaz porquanto particulariza o modo de governar e seus apoiadores vão às ruas para defendê-lo. Para tanto, no Planalto concorrem o trabalho de várias assessorias, orientadores em nome de uma paz (silenciamento) e uma guerra simbólica entre o governo Bolsonaro (o bem) e aqueles que o questionam (o mal) e emperram o desenvolvimento nacional. Nesse cenário, a Covid-19 é um detalhe. Para a passividade dos cidadãos concorrem as assessorias religiosas e militares. Para os soldados cabe justificar tudo em nome da paz, da segurança e conter violentos cidadãos e a assessoria religiosa se responsabiliza por bênçãos e expulsões demoníacas suficientes para negar a ciência e manter passividade e obediência dos crentes, daqueles ungidos pela proteção divina.

Da guerra simbólica, encarrega-se o dito “gabinete do ódio” que recria seus próprios inimigos, com nomes e sobrenomes derivados dos vocábulos e pessoas de esquerda, comunistas e equivalentes. Alimentar o ódio e a paranoia, identificar a perseguição que ora vem do legislativo, da imprensa, do judiciário e dos partidos é sua função. Não há nenhuma responsabilidade pública sobre a postagem de acusações, impropérios, mentiras nas redes digitais.

Diante da necessidade da verdade sobre a Covid-19, pela primeira vez, desde 2016, as fakenews vêm sofrendo derrotas, embora o protagonismo do governo Bolsonaro delas necessite. As decisões do Twitter, Instagram e Facebook de excluir mensagens errôneas do presidente sobre a Covid-19 desqualificam o discurso do presidente e o punem, mais rapidamente que os poderes nacionais.

Os discursos do presidente são essenciais na consecução dessas estratégias mórbidas, ou seja, seus destemperos e desequilíbrio ostensivo na propagação de suas verdades particulares contra as quais a resposta é agressão e acusação. A Covid-19 serve para que afirme “sou eu quem mando nesta terra” e “a verdade nos salvará”. A verdade não inclui os trabalhadores das chamadas linhas de frente, o SUS e a sequência de mortes. Os fanáticos aplaudem e acreditam, porque precisam negar que algo pode dar errado. O exemplo mais contundente destas estratégias foi a campanha O Brasil não pode parar, veiculada como “teste” nas redes sociais, mas proibida por decisão judicial. Ou seja, nada da dimensão pública interessa.

Importa ao campo da comunicação política entender o funcionamento do Governo Bolsonaro na relação com a democracia e o capitalismo. É interessante que mesmo com as características de um capitalismo predador como é o Brasil, a sobrevivência e o futuro sempre pareceram possíveis, mas o que acontece quando o governo evidencia seu desprezo pelo aparato democrático e pela sociedade; quando se diz dotado de uma verdade mística para tomar decisões sobre a vida do país e dos cidadãos?

A comunicação pública é indicador da qualidade da democracia, porque o governo fala sobre o interesse público. A liberdade de comunicação da sociedade e da imprensa deve estar associada à qualidade da comunicação produzida pelo Estado. Neste momento, a comunicação entre a presidência e os cidadãos é mortal porquanto promove a insegurança.

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