A convite da Compolítica, pesquisadores e pesquisadoras associadas refletem sobre a comunicação e política em tempos de pandemia.
Marcelo Alves (ESPM-RJ e IBPAD) discute os desafios da pesquisa em ambiente digital nestes meses e no futuro pós-pandemia, com o fechamento de canais de coleta de dados públicos de várias plataformas de comunicação.
Boa leitura!
Pandemia em dados: desafios de pesquisa na plataformização midiática
Marcelo Alves dos Santos Jr.
Doutor em Comunicação pela UFF. Pesquisador do Laboratório de Mídia, Democracia e Instituições Políticas (Lamide). Professor da ESPM-RJ e do IBPAD
https://marceloalves.netlify.app
Estamos atravessando uma agressiva pandemia que ceifa centenas de milhares de vidas no mundo todo. Bilhões de pessoas estão confinadas em suas casas, preocupadas com seus familiares e ansiosas pelas perspectivas de futuro, que se tornam, a cada dia, mais incertas e preocupantes. Como se não bastasse uma emergência sanitária, temos que enfrentar, ainda, a deterioração avançada das instituições democráticas no Brasil. Talvez seja o único lugar do mundo onde a Covid-19 não tenha sido manchete principal na última semana, em função de infindáveis escândalos políticos e da paralisia governamental. Este texto é uma contribuição sobre dificuldades e possibilidades para a pesquisa acadêmica aplicada em ambientes digitais para o devir pós-pandemia.
Em reflexão anterior nessa série, Camilo Aggio analisou elementos da crise epistêmica (Benkler et al., 2018), abordando a quebra do modelo tradicional de ordenamento da agenda pública pelo gatekeeping institucional. Durante a pandemia, enfrentamos as consequências mais sérias desse processo, a saber, as inúmeras campanhas de desinformação que circulam nas plataformas digitais. O estoque de insanidades é amplo e variado: máscaras importadas da China vieram infectadas pelo vírus; o “vírus chinês” foi uma estratégia de guerra biológica para destruir a civilização ocidental; mobilizações para invadir e filmar hospitais, supostamente desertos; além de uma infinidade de correntes, num primeiro momento, absurdas, mas com graves consequências sanitárias, como a quebra do isolamento social, recusa em utilizar máscaras e auto-medicação.
Uma dificuldade não trivial de análise em tal panorama é, efetivamente, encontrar os objetos. Os sistemas midiáticos contemporâneos são altamente fragmentados. Há uma quantidade infindável de meios e de produtores de conteúdo. A visão global sobre o sistema midiático, antes uniformizada pela concentração dos meios massivos, é quase impossível no panorama de digitalização e personalização das esferas públicas. Se o poder de influência dos meios de comunicação de massa na formação da opinião pública e dos consensos sociais está, de forma cada vez mais evidente, em declínio, quais são os circuitos, veículos e estratégias que permitiram tangenciar os gatekeepers midiáticos?
O conceito de abundância midiática não é novo e é impressionante como 20 anos em comunicação política equivalem a séculos de transformação em outras disciplinas. Na virada do milênio, autores como Blumler e Kavanagh (1999) já prenunciavam que a mídia se tornava uma hidra indomável com diversas bocas a serem alimentadas; e, numa peça à frente de seu tempo, Chaffe e Metzeger (2001) sugeriam a chave analítica do “fim da comunicação de massa” para compreender a comunicação do século que estava por vir. Naquele contexto, a literatura especializada estava preocupada com a proliferação de canais de televisão a cabo e tentando entender qual seria o impacto da internet. Ocorre que, 20 anos depois, quando me deparo com as hashtags #GolpedeEstado e #OrepeloBolsonaro e #STFGolpista nos trending topics com centenas de milhares de tweets, a hidra parece um bichinho adorável, frente à caixa de pandora que foi aberta no final da década de 2010.
Certamente, descartar a influência dos meios de comunicação não é um caminho analítico profícuo, tendo em vista a capilarização do rádio e da televisão aberta no Brasil. A ideia de sistema midiático híbrido de Chadwick (2017) nos ajuda a elucidar uma dinâmica de negociação e conflito entre lógicas massivas e emergentes, que se retroalimentam e entram em choque. No entanto, a dominação digital advinda da concentração sem precedentes da economia da atenção global em plataformas midiáticas controladas pelo Facebook e pelo Google adicionam novos elementos à compreensão dessa conjuntura fragmentária e insular.
A chave analítica da plataformização da comunicação foca nas infraestruturas tecnológicas e nos processos sociopolíticos colocados em movimento pela ascensão de sites como Facebook e Google que interferem e canalizam os tráfegos digitais (Helmond, 2015). Para a pesquisa e para esse texto em particular, cabe notar que essas gigantes tecnológicas são, por definição, contrárias ao escrutínio público e à investigação acadêmica independente. Obviamente, o Facebook e o Youtube não gostariam de ver evidências de que seus poucos esforços para conter a armamentização de suas ferramentas de propaganda digital não impedem que falsários espalhem perigosas mentiras sobre a pandemia. O Twitter descredita todas as pesquisas aplicadas que apontam, vejam só, a coordenação de estratégias artificiais para inflar métricas e subir hashtags antidemocráticas e que ameaçam a saúde pública.
Isso se desdobra, na prática, em instrumentos impeditivos para que pesquisadores consigam encontrar seu objeto nas mídias digitais e extrair dados para investigar suas questões. Depois do fechamento de canais de coleta de Facebook e Instagram, das dificuldades impostas por Google, Twitter e Youtube ao reduzir limites de acesso e da absoluta caixa preta que é o Whatsapp, não é absurdo afirmar que corremos o risco de ficar vendados em meio ao caos. De forma similar à ausência de testes massivos para compreender o avanço da pandemia, o “APIcalypse” (Bruns, 2019) fecha as fronteiras de acesso a dados públicos sobre a epidemia de desinformação que se espalha rapidamente nas plataformas digitais.
Tendo isso em mente, quais os principais caminhos e possibilidades para viabilizar a pesquisa aplicada em espaços digitais? Essa é uma das perguntas mais importantes a se fazer e que deve se desdobrar em ações concretas e coordenadas em diversas frentes. Sugeriria algumas possibilidades a serem pensadas: capacitação metodológica, ciência aberta, convênios tecnológicos e fomento público.
Em primeiro lugar, é imperativo pautar iniciativas de capacitação em metodologias diversas. Nesse sentido, é fundamental contemplar técnicas, procedimentos e ferramentas qualitativas, quantitativas e a combinação de métodos mistos para o desenvolvimento de projetos aplicados. Por exemplo, métodos etnográficos de imersão em grupos de WhatsApp triangulados com a mineração de dados em larga escala têm se mostrado promissores para jogar luz sobre essa caixa preta. A experiência pioneira da I Escola de Verão da Compolítica foi essencial ao ofertar minicursos sobre grupos focais, estatística, programação, análise de conteúdo e análise qualitativa. É preciso sistematizar as oficinas como momento de aprendizado e cooperação, visando compartilhar as técnicas para multiplicar a capacidade de investigação da área.
Um segundo movimento seria investir na transparência científica. Isso pode ser feito a partir de discussões sobre replicabilidade e reprodutibilidade dos desenhos de pesquisa. Assim, num cenário desértico de acesso aos rastros digitais, um caminho seria publicizar materiais suplementares de artigos, como bases de dados com as variáveis utilizadas para que possam fomentar outras iniciativas de projetos acadêmicos. Isso pode ser feito por meio dos periódicos, websites de grupos de pesquisa ou pelos diversos repositórios gratuitos disponíveis, como o FigShare.
Uma terceira estratégia seria a elaboração de convênios amplos para a criação de infraestruturas tecnológicas para extração e armazenamento de dados em grande volume. Uma preocupação é com a inescrutabilidade de eventos que ocorreram no passo pela impossibilidade de reconstituir os dados, seja pelo problema de acesso ou porque as páginas podem deletar as publicações, potencialmente apagando a memória dos fenômenos. Por exemplo, analisar dados que circularam em junho de 2013 é quase impossível pelos limites de retroatividade das APIs. Isso poderia ser minorado por meio de articulações feitas pelas associações científicas para montar sistemas de extração em tempo real e consolidação histórica desses dados, como, por exemplo, o Media Cloud do MIT.
Por fim, obviamente tudo isso demanda o planejamento e execução de políticas públicas de investimento e desenvolvimento da Ciência nacional. Nada pode ser feito num cenário de precarização e combate ao método científico. Isso se torna mais grave na área das Ciências Sociais e Humanidades, impedidas até de concorrer a bolsas de iniciação científica. O desprezo com a Ciência e a Tecnologia constitui grande parte do problema de crise epistêmica e de colapso dos consensos socialmente estabelecidos. A pandemia pode ser um ponto de virada para a sociedade brasileira pensar qual modelo de país queremos para o futuro e qual o papel da Ciência nesse devir.
BENKLER, Yochai; FARIS, Robert; ROBERTS, Hal. Network propaganda: Manipulation, disinformation, and radicalization in American politics. Oxford University Press, 2018.
BLUMLER, Jay G.; KAVANAGH, Dennis. The third age of political communication: Influences and features. Political communication, v. 16, n. 3, p. 209-230, 1999.
BRUNS, Axel. After the ‘APIcalypse’: social media platforms and their fight against critical scholarly research. Information, Communication & Society, v. 22, n. 11, p. 1544-1566, 2019.
CHAFFEE, Steven H.; METZGER, Miriam J. The end of mass communication?. Mass communication & society, v. 4, n. 4, p. 365-379, 2001.
CHADWICK, Andrew. The hybrid media system: Politics and power. Oxford University Press, 2017.
HELMOND, Anne. The platformization of the web: Making web data platform ready. Social Media+ Society, v. 1, n. 2, 2015.