A convite da Compolítica, pesquisadores e pesquisadoras associadas refletem sobre a comunicação e política em tempos de pandemia.
Boa leitura!
A forma como se comunica covid-19 também contagia
Emerson Cervi
Professor da Universidade Federal do Paraná. Coordenador do CPOP.
www.cpop.ufpr.br
A pandemia causada pela covid-19, que fez com que o Brasil decretasse estado de calamidade pública já em março de 2020 é, também, uma oportunidade para aprendermos a como enfrentar uma crise social em todas as suas dimensões – inclusive a comunicacional. A estratégia adotada no Brasil foi de centralização das ações a partir do Ministério da Saúde, o que segue uma tradição da nossa federação: políticas que nascem centralizadas na União e vão se irradiando para os entes federados subnacionais. O argumento naquele momento, ainda sob a responsabilidade do ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta, é que a União concentraria informações e distribuiria recursos conforme fossem as necessidades reais dos Estados e municípios. A justificativa era que com isso Estados e municípios mais ricos não concentrariam recursos escassos, gerando um duplo dano aos Estados mais periféricos. Em momentos de escassez de recursos, políticas de centralização são as mais eficientes. Além disso, uma política de comunicação que contribua para a adequada representação do problema é fundamental para o sucesso das medidas de combate. Este comentário tem o objetivo de discutir como as opções de comunicação podem contribuir para um tipo de reconhecimento da crise sanitária e do seu enfrentamento.
No caso da cobertura dos grandes meios de comunicação sobre a covid-19, seguimos uma tendência de concentração de produção em alguns Estados – aqueles que concentram o maior número de emissoras por habitante e onde estão localizadas as “cabeças de rede”. Como o mapa 1.b a seguir indica, há grande concentração de emissora nas regiões Sul e Sudeste, com uma média de 358,5 emissoras por UF, com grande variação. Roraima apresenta apenas 22 emissoras, por um lado, e há 1.428 emissoras em SP, por outro. Isso tem como impacto a maior produção de conteúdos e concentração nessas regiões do País. De maneira geral esse “desequilíbrio” e concentração de centros de produção de conteúdos não é um problema, pois coincide com a “concentração” populacional do Brasil. O mapa 1.a mostra a distribuição da população brasileira por Unidade da Federação a partir de uma estimativa feita pelo IBGE para o ano de 2019. Temos, no Brasil, cerca de 211 milhões de habitantes, com uma média de 9,2 milhões por UF e grande heterogeneidade, com Estados concentrando muita população, como é o caso de SP, com 46 milhões, por um lado e RR, com 605 mil, por outro. Os mapas 1 mostram a distribuição em torno da média da população e dos meios de comunicação. As cores mais quentes, tons de vermelho, indicam unidades de desvio padrão acima da média, e as cores mais frias, tons de azul, mostram as unidades de desvio padrão abaixo da média. Perceba que em condições normais a concentração das sedes dos meios de comunicação coincide com a concentração populacional.
Os mapas 2.a e 2.b mostram como a distribuição de casos e óbitos registrados pelo Ministério da Saúde, em números absolutos, seguem – como é de se esperar – a distribuição populacional. As cores quentes mostram que UFs da região Sudeste, depois do Sul, concentram a maior parte dos casos e das mortes, ficando acima da média nacional para as duas informações. É comum vermos enquadramentos da cobertura sobre covid-19 que consideram as características da concentração de números absolutos em algumas UFs. É o caso de o número de mortos de SP ser maior que o da China, ou a atenção dada à capacidade de contágio em ambientes como as favelas do Rio de Janeiro. No entanto, o uso de dados absolutos para tratar de uma pandemia escamoteia os efeitos reais da crise sanitária sobre as populações das UFs, em especial às que têm população pequena, mas com alta incidência de casos e óbitos.
Para evitar a distorção causada pela concentração populacional na análise dos efeitos da pandemia por UF, existe uma técnica de análise geográfica que estabelece o “Risco Relativo”, evitando distorções causadas pelos números absolutos. De acordo com essa técnica, os dados de um evento (aqui são casos confirmados e mortes computadas por covid-19) são relacionados com os dados da base, que pode ser a população do Estado, por exemplo, e então calcula o risco de sofrer tal evento, considerando as variações da variável base. Em outras palavras, o risco relativo é calculado para mostrar o excesso de risco a partir de uma razão entre o número de eventos acima do número esperado desses eventos para cada unidade territorial. O número esperado é calculado aplicando o risco médio (número total de eventos em todos os locais acima do total da população do País) à população em risco em cada UF. Risco menor que o geral indica que há menos eventos naquela unidade geográfica do que o esperado e é registrado com tons de azul, a cor fria. Valores maiores à média indicam que o número de eventos excede a expectativa geral e são registrados com tons de vermelho, cor quente.
Para o caso específico, se a unidade da federação apresenta o mesmo risco de contágio e óbito por covid-19 que a média nacional, então, seu risco é 1 (um). Se ela é apresentada por tons de azul, o risco de contágio ou óbito naquela UF é menor que a média nacional, portanto, abaixo de 1 (um). Se o risco fica acima da média nacional, então a UF será indicada por um tom de vermelho e quanto mais distante da média nacional, mais intenso será o tom. Chega até a um risco quatro vezes superior à média nacional, quanto o tom é vermelho escuro.
A seguir, nos mapas 3.a a 3.f, são aplicados os riscos relativos para casos registrados e óbitos computados por covid-19 para três variáveis que servem como base: a) a população da UF; b) disponibilidade de leitos de UTI; c) percentual de população com acesso à banda larga. Perceba como as distribuições dos riscos relativos são parecidos nas três bases e como em todos os casos elas se opõem às distribuições de valores absolutos de casos e mortes. Em todos os mapas 3 os Estados do Amazonas e Pará apresentam riscos de contágio e morte acima da média nacional. O Estado de São Paulo, que em termos absolutos aparece sempre como caso mais distante acima da média, quando consideramos o risco relativo ele se aproxima da média. Às vezes pouco acima do risco médio, às vezes pouco abaixo dele. Outra informação importante é que as três bases apresentam comportamentos muito similares, mostrando que população, disponibilidade de UTI e acesso à informação – via percentual de população com acesso à banda larga – são controles com efeitos similares para o risco relativo de contágio e óbitos por covid-19.
O que a distribuição dos casos por “risco relativo” nos mostra? Ela nos indica que no caso da covid-19 a maior concentração populacional não ajuda a entender os efeitos da doença. A concentração das sedes dos meios de comunicação em regiões onde o impacto relativo da doença é menor e o enquadramento predominante como consequência dela, atrapalha a compreensão da dinâmica da doença. Em outras palavras, o maior número de contaminados e mortos em algumas regiões não significa que as pessoas dessas regiões sejam as que estão correndo maiores riscos.
No caso da covid-19 a diferença entre os termos absolutos e relativos tem impacto direto sobre as decisões de política pública. Estados das regiões norte e nordeste precisam de mais atenção e recursos da União para minimizar os efeitos da pandemia do que as demais regiões do País, ainda que isso não apareça de maneira geral na forma de cobertura que a imprensa faz da doença. A forma como comunicamos a covid-19 tem impacto sobre como o País trata o contágio e as mortes por conta da doença. Ainda que dramas pessoais e imagens impactantes de covas coletivas façam parte da cobertura tradicional, restringir-se a isso é contribuir para a manutenção de uma visão distorcida dos efeitos da epidemia e pode gerar constrangimentos para a aplicação de critérios técnicos na distribuição de recursos escassos.